segunda-feira, 5 de setembro de 2011


O Brasil em marcha
Com novas formas de propaganda nacionalista, Getúlio Vargas buscou constituir uma sociedade militarizada. Uma mentalidade inspirada no nazi-fascismo e para a qual a população da época estava aberta


© CPDOC/FGV
Estudantes praticando exercícios em aula de educação física. O objetivo era ter um “corpo social” saudável e preparado para a defesa da pátria
Uma nação industrial, disciplinada, unificada e saudável. Era esse o projeto do Estado Novo para o Brasil, e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) era seu porta-voz. Os adjetivos citados são intrínsecos à lógica militar, e não por acaso: no contexto da Segunda Guerra Mundial, a intenção de Getúlio Vargas era constituir uma sociedade militarizada, um “front interno” no país – como assinala o historiador Roney Cytrynowicz – como consolidação da esfera de ordem e disciplina em âmbito nacional. Dessa mentalidade o DIP fez propaganda, especialmente com o objetivo de conquistar as classes médias urbanas, e lançou mão de diversos instrumentos, entre eles, o Cine Jornal Brasileiro, produzido entre 1939 e 1945.

Série de curtas-metragens informativos exibidos obrigatoriamente em todas as salas de cinema do país (em geral antes de longasmetragens de ficção), o Cine Jornal Brasileiro acompanhava as ações de Getúlio. Podemos dividir a série em dois momentos: um de 1939 a 1942, utilizado para difundir o projeto estadonovista, e outro até 1945, dedicado à prestação de apoio às Forças Aliadas, no momento de rompimento de Vargas com os países do Eixo. No primeiro momento, figuravam na tela inaugurações de obras públicas, cerimônias cívicas, visitas diplomáticas, referências à industrialização do país, entre grande multiplicidade de temas, recheados pela contemplação do propósito estadonovista, com repetidas cenas de desfiles militares, marchas, demonstrações de força e ordem, e de “cultura física”, que preparavam o terreno ideológico para a construção do modelo de sociedade militarizada.

© CPDOC/FGV
Manifestação em homenagem ao Estado Novo reúne milhares de jovens em coreografia de exercícios no Rio Grande do Sul, durante a Segunda Guerra Mundial
Dentro da multiplicidade de temas retratados pelo Cine-jornal Brasileiro, um aspecto predominante parece convergi-los para uma mesma direção: a militarização do corpo, como propõe o historiador Alcir Lenharo. Os curtas-metragens mostravam a disciplina de exercícios a ser praticada a todo momento, em todos os lugares – vale mencionar que “cultura física” é tema de abertura de diversas edições da série. Como atividade rigidamente orientada, a marcha, espetacularizada, evidencia o projeto de disciplina e ordem, tema que, por si só, detinha longas seqüências e atenção especial do narrador do filme.

Havia a constante da aparição de “corpos brasileiros” marchando em prol de um “Estado novo”. Já com a realização de cerimônias cívicas, o Estado Novo reafirmou suas estratégias diplomáticas e sua política militarista. Em cenas de visitas de Getúlio Vargas a escolas do Exército, por exemplo, além do cerimonial da chegada do “Chefe da Nação”, são retratados longamente os desfiles de oficiais: primeiro os do Exército, fazendo suas honras, e, em seguida, os desfiles alinhando uma “multidão” de homens na prática de exercícios de marcha e luta.

DIVULGAÇÃO
Cartaz do filme Olympia, de Leni Riefenstahl, cineasta do terceiro Reich, e propaganda do governo de Vargas: a inspiração alemã é nítida na estética da comunicação varguista. O culto ao corpo, ao trabalho e a vontade unidos pela pátria caracterizavam o período.
Em uma das edições de 1941, o narrador do Cine Jornal Brasileiro expõe a centralidade da “cultura física” para a lógica do Estado Novo. Ele diz: “As festas inaugurais presididas pelo chefe do governo constituem importante e imponente espetáculo de vibração física, do qual participa a mocidade dos clubes esportivos, colégios e associações patriotas do estado. Em palavras que proferiu nessa ocasião, o presidente Getúlio Vargas declarou: 'Impulsionar o mais largamente possível a cultura física é obra de sadia brasilidade, a educação do corpo na ampla concepção da palavra significa também o cultivo de novos e excelentes atributos do espírito, não só a robustez, mas a saúde fisiológica. Conseguem-se nos gramados e quadras desportivas a agilidade, a destreza e a resistência muscular. Estimulam-se e fortalecem-se partículas intelectuais de alta ascendência no desenvolvimento harmônico da personalidade. A percepção rápida e o sentido exato das reações não constituem as únicas qualidades do atleta, porque ele também adquire firmeza nas decisões, a segurança de ação no ato salutar da disciplina consciente e o espírito de invariedade e de cooperação interessada'”.

Com freqüência, o mesmo narrador utiliza expressões como “aperfeiçoamento da raça”, “evolução da espécie”, “preparo físico das novas gerações”. A respeito das “novas gerações”, é curioso mencionar outra edição de 1941 (filme no 76, volume II), que acompanha um desfile infantil. Na verdade, trata-se de crianças de 2 a 4 anos, desfilando no colo de suas mães, disputando um campeonato de quem era mais robusto. Evidenciando, ainda, o projeto eugênico do Estado Novo, a cena privilegia mulheres brancas, bem vestidas, carregando seus filhos brancos, em sua maioria, em uma sugestão de que o “povo brasileiro” seria futuramente composto por aquele tipo de físico.

FUNDAÇÃO CINEMATECA BRASILEIRA, SÃO PAULO
Abertura do Cine Jornal Brasileiro: os pequenos documentários de propaganda eram exibidos obrigatoriamente antes dos filmes durante o Estado Novo
ACEITAÇÃO SOCIAL Não foi à toa que, no final da década de 30, a valorização do corpo entrou para “a ordem do dia” da sociedade brasileira, seja pelo surgimento de revistas especializadas em saúde, higiene e educação física, seja pela própria institucionalização do cuidado com o corpo. Também não é coincidência o fato de o cinema ter sido inventado no mesmo momento em que se comemorava a descoberta dos raios X. O corpo, menos conhecido até então, passa a se transformar num objeto legível, passível de ser traduzido em imagens. Logo, uma nova relação estava sendo estabelecida e um novo código de regulação e de disciplina se formava. As preocupações em relação às atividades físicas disciplinadas expunham a idéia da higiene e estavam conectadas a uma forte base moral, propagada desde o século XVIII pelo saber médico.

Em 1937, o Estado Novo, recém-instaurado, reafirma a importância da Educação Física para a implementação de uma política de integração nacional. A partir de então, a Educação Física passou a integrar o ensino em todas as escolas primárias, normais e secundárias do país, como decretava a Constituição Brasileira de 1937: “O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação”. Ou seja, a preparação física em defesa da nação tornou-se uma das tônicas mais significativas da política e propaganda varguistas, sendo que os temas saúde, higiene e educação física estavam interligados no imaginário do período, para nutrir a idéia da construção de um novo “corpo” do povo brasileiro.
O próprio modo de se vestir sofreu forte influência da estética militarizante do período. Ao longo da década de 30, a moda feminina foi, aos poucos, se “masculinizando” e se “militarizando”, como se antevisse a moda que seria comum durante a Segunda Guerra Mundial. Sapatos pesados, com salto grosso, de amarrar ou no estilo botina, foram sendo cada vez mais aceitos pelas mulheres brasileiras e, com a eclosão do conflito, tornaram-se ainda mais sisudos. No início da guerra, as roupas femininas já demarcavam uma silhueta em estilo militar. Confeccionados com tecidos pesados, jaquetas e capotes tinham corte reto, com ombreiras demarcadas.

O DIP, pelo Cinejornal Brasileiro, se valeu da aceitação prévia dessas premissas que buscava afirmar. Por meio das imagens, o Estado buscava construir uma intimidade com o poder. Como nunca haviam sido antes, as autoridades eram expostas em primeiro plano, instaurando nos espectadores a sensação mágica de proximidade com o “Chefe da Nação” e as autoridades que o acompanhavam. Pelas imagens dos corpos em marcha, a sociedade disciplinada foi contemplada e, a partir dela, a nação aparecia unida corporalmente, como um só organismo. Tal contato com o Estado extrapola o âmbito racional e burocrático, para adentrar num âmbito sensorial. Aliada às imagens, a presença aguda da música e do narrador dava intensidade à proximidade com o universo simbólico do poder.

Cabe ressaltar que a década de 30 foi marcada pela presença do rádio, um fator determinante na linguagem dos cinejornais. A forma narrativa da notícia provinha do narrador radiofônico, bastante difundido na sociedade brasileira do período. No Cine Jornal Brasileiro houve um encontro entre as linguagens radiofônica e cinematográfica para resultar, talvez, na melhor aceitação de um novo gênero comunicativo a ser explorado para a contemplação do poder – o cinema não-ficcional.

INFLUÊNCIA NAZI-FASCISTA Esse estilo fílmico provinha de referências internacionais, uma vez que o Brasil ainda não possuía tradição no campo do documentário político. Muitos dos regimes autoritários modernos, principalmente das décadas de 20, 30 e 40, utilizaram o cinema de não-ficção (documentários, cinejornais, filmes de atualidades, entre outros gêneros) como propaganda política. Alemanha e Itália, por exemplo, fizeram investimentos significativos, nos anos 30, para garantir o envio de material de propaganda para a América Latina, incluindo o Brasil. Apesar da dificuldade de exibição de propaganda nazi-fascista no país, devido à intensa concorrência com distribuidoras americanas já instaladas, a sólida relação do ideário fascista com setores da intelectualidade brasileira fez com que esse tipo de propaganda tivesse adeptos à sua divulgação em território nacional e uma repercussão notável no Brasil.
A elite brasileira, nos anos 20 e 30, afirmou em diversos artigos publicados pela imprensa da época uma expressiva simpatia pelas doutrinas fascistas. Tais “influências internacionais” foram decisivas na construção de um imaginário político e propagandístico que caracterizou, em especial, o início do governo de Getúlio Vargas. A Alemanha da época buscava tornar-se uma nação puramente ariana, um corpo nacional específico que comporia um “Novo Império”, o chamado Terceiro Reich. Na Itália fascista, o corpo nacional, destruído após a Primeira Guerra Mundial, procurava ser refeito. Ambos os países estavam em reconstrução “mental e física” e passaram pelo período da valorização dos monumentos, das grandes construções arquitetônicas, do culto ao corpo, da higiene, da força militar.

Nesse sentido, é possível identificar características semelhantes na produção cinematográfica desses países com a produção inicial do Cine Jornal Brasileiro, entre 1939 e 1942. Mesmo considerando suas particularidades, em ambos havia o ideário político ligado à unidade nacional de um Estado forte e centralizador, a negação da luta de classes, a alusão aos inimigos da Pátria, a figura de um líder carismático, o enaltecimento aos novos monumentos arquitetônicos, erguidos pelo “surto do progresso” nacional. Retratavam, também, inaugurações de obras públicas, os desfiles cívicos e o treinamento físico das novas gerações.

Os documentários nazistas eram, na realidade, longas-metragens, que contavam com amplo aparato técnico, inviável para os padrões brasileiros do período. Além disso, a sofisticação estética dos filmes da documentarista alemã Leni Riefenstahl, por exemplo, era incomparavelmente superior à estética de filmejornal ou cinejornal produzidos no Brasil. De fato, comparar o filme Olympia a qualquer edição do Cine Jornal Brasileiro é apenas aproximar as similaridades quanto à utilização do esporte como ferramenta moral e instrumento de regeneração da raça. Como em Olympia, constatamos na produção nacional a recorrente utilização de imagens do corpo e dos esportes como ato de patriotismo, valorizando seus músculos, sua agilidade e principalmente a perfeição de seus movimentos.

Em O triunfo da vontade, o espetáculo proporcionado por Leni Riefenstahl é tão monumental que, de fato, o espectador tem condições de sentir-se “ali, entre os estandartes, flutuando com as bandeiras, em pé, próximo a Hitler”. Nesse filme, encontram-se muitas dimensões que nortearam o imaginário nazista, que não deve ser comparado aos curtas-metragens do DIP. Em primeiro lugar, deve-se atentar para a imensidão impactante das cerimônias nazistas, exploradas pela documentarista alemã. Em O triunfo da vontade, as cenas mostravam o projeto do terceiro Reich Alemão. Essa grandiosidade certamente influenciou alguns aspectos das produções cinematográficas do período autoritário do governo Vargas, embora não tivessem a mesma sofisticação. Podemos observar essa influência em algumas das cenas do Cinejornal Brasileiro, nas quais, repetidamente, era mostrada a chegada de Getúlio Vargas de avião. Trata-se da famosa cena do início do filme de Leni Riefenstahl. Apesar de a câmera não estar dentro do avião, como é o caso do filme nazista, a cena remete simbolicamente à mitificação do líder, como se chegasse do céu.

Os governos autoritários dos anos 30 e 40 se caracterizaram por construir um modelo de organização da sociedade que previa uma grande concentração de poder nas mãos do Estado, além da personificação do poder e da autoridade. Aliado a isso, no âmbito ideológico, eram-lhes impressos estereótipos raciais e sociais. A construção da nação deveria ser pautada na ordem, obediência à autoridade e aceitação resignada das desigualdades sociais, sendo esta última característica mais expressiva no caso brasileiro.

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